Ultimamente,
Eduardo, o seguro de si,
aquele que detestava folgas e gente folgada, que achava incoerente
muita cultura dentro de pouca roupa e contracultura com gente
desnuda, que exortava em
ímpeto à sua filha
que “tudo que não fosse labuta era lazer”,
andava bem desconfiado que
seu trabalho, o ofício que edifica o homem! A
jornada! Estava lhe roubando a luta.
– Mas veja que
injustiça Tom,
Eu! José Eduardo Campos da Silva! Que nasci mais insignificante que
meu sobrenome, numa miséria
em que nascer vivo era milagre fui o terceiro que sobreviveu dos onze
que saíram da barriga, na matemática da morte faço parte
do resto permaneceu. Não tem cabimento essa fadiga Tom.
– Tom não Eduardo!
Antôim!An-tô-im!
– Repreendeu
Dona Dulce do alto de sua mania de escutar oração
atrás da porta, desde
quando nem porta havia.
– Antôim, respeite o Santo! E eu já disse
que Santo Antôim num é santo pra essas reza!
Noventa anos cravados
na terra que há de comer tudo, menos seus ossos, sua história e sua
audição absoluta, Dona Dulce só espreitava oração, não era
mulher de
espalhar conversa alheia, adquiriu esse
hábito por tradição, desde que Valdemar, tio mais novo de Eduardo
pediu um peão, um circo e um jumento que voava a Santo Expedito.
Contava isso erguendo a voz,
o dedo e a razão sem sucumbi a envergadura cervical:
– Agora me diga!
Onde já se viu pedir um peão a um santo das causa impossível?
Era aí que Sr.
Aluísio entrava:
– E eu que pensava que o
problema era o jumento.
Todos riam da mesma
história que só tinha de nova a risada dos netos, o resto era o
uníssono
obrigatório gargalhar dos filhos no teatro do domingo na casa de
Dona Dulce, ou seria,
caso o segundo A.V.C. não tivesse tirado de
Seu Aluísio o lado que se
movia, e o terceiro herdado a vida que vegetava
o pai de Eduardo, Tibério, João, Aluísio Jr., Aparecida, Lia,
Nena, Vera e os trigêmeos que do espólio da vida não levaram nem o
nome, morreram antes que
abrissem os olhos.
Eduardo era o mais
jovem dos filhos homens, nasceu para os cálculos aprendendo a contar
os irmão que faleciam, media o caminho até a escola em léguas e
nunca teve mais que um
caderno, no
sábado lhe restava a alegria de fazer as contas na areia, no meio da
feira onde iam conquistar o
apurado da semana, com um
pedaço de madeira que equivalia uma caneta, benzendo e repreendendo
as malicias que levariam as custas de seu pai analfabeto, fazia
disso sua glória, a vida agrária não trazia gosto, só levava dele
o peso e o suor, dizia que era bom mesmo em calcular, que resolvera
os Cálculos Renais de Dona
Dalva dos temperos, ali
mesmo, no meio da feira de Formosa, só depois veio saber que a
operação de Dona Dalva, não era matemática, dali então, decidiu
que ia ser médico, só para não sair por mentiroso, não era homem
de ecoar essa história pela
casa, só quando extrema, a lição de moral fosse necessária, se
tornou médico ao fim das contas, o que lhe valia de vitória, já
que fora o mentiroso da Feira de Formosa mesmo
sendo Cardiologista.
– Que coisa feia
mãe! Escutar oração dos outros! Onde já se viu?
– Fei é chamar Santo de Tom,
e baixe o tom pra falar comigo que sou sua mãe!
– Baixo não!
– Eduarrrrrdooo...
– Baixo não
mãe, o coitado já tá de cabeça pra baixo...
– Eduardo
Campos da Silva!
Dona Dulce não entendeu a
piada, mas compreendeu o desdém.
– Ta bom mãe,
me desculpe. “Antoim”!
Apontando o dedo e
tocando seu filho com o olhar torceu a situação até pingar a
última palavra, que por ventura, respeito e imposição era
sempre sua:
– “Santo
Antoim”, e já disse que num é santo pra essas reza!
Para cada fim de domingo que
arrancava de seu lado menino a obrigação de ser o homem da
segunda-feira, Eduardo tinha o trajeto de casa, era o disparo e o
descanso, ele revia e revivera em meia hora sua vida inteira
trafegando e concluindo entre um semáforo e outro o que fora e o que
era, faltou-lhe no decorrer da estrada o que hoje lhe sobrava, tinha
sombra, sacada, piscina, sauna, saúde e saudade, só não sabia de
que, mas não tinha conflitos, nem tempo para exercer além do
ofício a existência, resistia a sentar e sentir, só sentava para
trabalhar, caminhava para chegar, achava que rotina era um hábito e
trajava essa batina todo santo dia útil e domingos alternados,
chegava a porta de casa e de dentro de um forte blindado que
insistiam em chamar de portaria, alguém que ele nem via lhe permitia
a entrada, não lhe importava quem abrisse o portão do Pallace de
León, só entrava porque morava, estacionava pois havia de guardar
o carro, só deitava porque dormia, afinal, amanhã por mais
segunda-feira que fosse era sempre um primeiro dia.
Enquanto a segunda-feira, roubava o
descanso, matava a felicidade e destruía a disposição de Lis,
secretária de Eduardo, ele atrasava por descuido e ainda
inconformado reclamava com seu ego e difamava seu âmago: “tão
pontual, não sei nem mais ser o que era”.
Eduardo atrasara quase como um
ritual, passava distante do que cumpria há anos atrás com
excelência, o que chamava de fadiga eu traduzia como idade, sei
disso pois o mesmo me dizia que não importava o quanto olhasse no
relógio estava sempre atrasado, não importava quanto esforço fosse
necessário ao desafio da jornada, paralelo aos compromissos estava
lá, sem cinismo, simples e justo, o desafio das horas, Eduardo era
vítima do tempo e achava que parar para notar isso era perdê-lo,
talvez não calçasse os sapatos tão rápido quanto antes, ou fosse
tão veloz em vestir a calça, ou mais! Talvez a culpa fosse da
diarista que fazia o café instantâneo atrasado, mas já não levava
mais os filhos ao colégio, como podia perder esse tempo ganhado? Aos
vinte e cinco Eduardo acordava cada dia mais velho, o tempo lhe
comia vivo e ele ainda pensava no futuro, agora com sessenta anos,
sufoca por um desafio a fim de não perder o sentido, mas não mantém
coerente a relação tempo e distância até o trabalho.
Nesse dia não entrou, transpassou
como um projétil até sua sala, pressurizou a porta como se
congelasse o tempo, olhou para o relógio que parecia gargalhar da
sua frustração, trincou os dentes de ódio e se dirigiu a porta a
fim de constatar se de fora, alguém ouvia aquela risada cronológica
de semitonamentos perfeitos em intervalos de um segundo, quando pôs
o ouvido no entalhado maciço escutou três batidas, que caso tivesse
herdado a audição sensível de Dona Dulce lhe perfurariam o
tímpano:
– Dr. Eduardo? – Era
Lis e toda sua fidelidade profissional.
– Que susto do caralho. –
Sussurrou. Se não haviam escutado o gargalhar do relógio, o
“caralho” sua secretaria captou, voltou a mesa em passos mais
sutis que o “tic tac” do seu inimigo, e soltou um “Pode
entrar”, num tom equilibrado totalmente avesso a situação.
Lis, lhe passou sua agenda
inteira como se ele não soubesse do que se tratava mais um dia, ele
ouvia o rebolar das palavras perdido na incerteza daquele ponteiro,
partindo de um mesmo ponto e voltando pro mesmo lugar sem tornar a
ser igual, contornando de sessenta em sessenta segundos uma segunda
de trabalho, isso era tudo que o relógio tinha a receber do tempo,
trabalho! Por isso ria, sabia que mesmo trabalhando a seu favor não
seriam poupados seus dias até que alguém esquecesse de trocar sua
bateria, contudo, no máximo pararia de girar, não retardaria o
badalo mas teria tempo para pensar nas voltas que a vida dá. Pá! Um
tapa na mesa e a explanação de uma ideia:
– É isso!
– Isso o que doutor?!
– Eu tô tirando a
pilha!
– Que pilha?!
– Do relógio!
– Que relógio?!!!
– Do meu!
– Mas o senhor nem
usando relógio está...
Só então percebeu que não
era Lis que falava, mas sua primeira consulta do dia. Além da vida,
o tempo achou pouco e veio lhe roubar a sanidade e a compostura,
constatou que passara literalmente a “olhar para o tempo”, se
projetava no vago, divagava no íntimo, um pensamento tão profundo
que achava inconcebível se encaixar num sertanejo domado pelo esforço,
quando retomava o instante nunca estava onde parou, e esse anjo
carniceiro, oxigênio da vida não economizava um único milésimo
de sua existência, sobrevoava sua carcaça numa performance
encantadora, degustando cada pedaço de Eduardo inerte aquela arte
que o tempo tem de passar desapercebido enquanto ele deleitava no
existencialismo, batizou isso de “tirar a pilha”, razão de
chegar atrasado, não era o trabalho que lhe roubava a luta, mas o
tempo que não dava trégua, precisava conversar comigo, precisava
ouvir a voz de Dona Dulce que valia mais de conforto que suas
palavras, precisava se aconchegar em sua mãe como um lugar seguro
enquanto ainda era possível, precisava de um desafio novo para
ocupar sua mente, distrair-se num novo ideal tão inerente a
realidade para não se destruir no principio da incerteza do que
estava por vir, Eduardo ainda não tinha percebido que o ideal não
existe pois esta no futuro e o futuro não existe até que aconteça,
o relógio sorria e ele clinicava pensando que não pararia nada
daquilo, nem aquela gargalhada.