Páginas

quarta-feira, 7 de maio de 2014

O emigrante do tempo


          



               Ultimamente, Eduardo, o seguro de si, aquele que detestava folgas e gente folgada, que achava incoerente muita cultura dentro de pouca roupa e contracultura com gente desnuda, que exortava em ímpeto à sua filha que “tudo que não fosse labuta era lazer”, andava bem desconfiado que seu trabalho, o ofício que edifica o homem! A jornada! Estava lhe roubando a luta.
                 
                 – Mas veja que injustiça Tom, Eu! José Eduardo Campos da Silva! Que nasci mais insignificante que meu sobrenome, numa miséria em que nascer vivo era milagre fui o terceiro que sobreviveu dos onze que saíram da barriga, na matemática da morte faço parte do resto permaneceu. Não tem cabimento essa fadiga Tom.
              – Tom não Eduardo! Antôim!An-tô-im! Repreendeu Dona Dulce do alto de sua mania de escutar oração atrás da porta, desde quando nem porta havia.     
             – Antôim, respeite o Santo! E eu já disse que Santo Antôim num é santo pra essas reza!

           Noventa anos cravados na terra que há de comer tudo, menos seus ossos, sua história e sua audição absoluta, Dona Dulce só espreitava oração, não era mulher de espalhar conversa alheia, adquiriu esse hábito por tradição, desde que Valdemar, tio mais novo de Eduardo pediu um peão, um circo e um jumento que voava a Santo Expedito. Contava isso erguendo a voz, o dedo e a razão sem sucumbi a envergadura cervical:
      
          – Agora me diga! Onde já se viu pedir um peão a um santo das causa impossível?

             Era aí que Sr. Aluísio entrava:

             – E eu que pensava que o problema era o jumento.

            Todos riam da mesma história que só tinha de nova a risada dos netos, o resto era o uníssono obrigatório gargalhar dos filhos no teatro do domingo na casa de Dona Dulce, ou seria, caso o segundo A.V.C. não tivesse tirado de Seu Aluísio o lado que se movia, e o terceiro herdado a vida que vegetava o pai de Eduardo, Tibério, João, Aluísio Jr., Aparecida, Lia, Nena, Vera e os trigêmeos que do espólio da vida não levaram nem o nome, morreram antes que abrissem os olhos.
        Eduardo era o mais jovem dos filhos homens, nasceu para os cálculos aprendendo a contar os irmão que faleciam, media o caminho até a escola em léguas e nunca teve mais que um caderno, no sábado lhe restava a alegria de fazer as contas na areia, no meio da feira onde iam conquistar o apurado da semana, com um pedaço de madeira que equivalia uma caneta, benzendo e repreendendo as malicias que levariam as custas de seu pai analfabeto, fazia disso sua glória, a vida agrária não trazia gosto, só levava dele o peso e o suor, dizia que era bom mesmo em calcular, que resolvera os Cálculos Renais de Dona Dalva dos temperos, ali mesmo, no meio da feira de Formosa, só depois veio saber que a operação de Dona Dalva, não era matemática, dali então, decidiu que ia ser médico, só para não sair por mentiroso, não era homem de ecoar essa história pela casa, só quando extrema, a lição de moral fosse necessária, se tornou médico ao fim das contas, o que lhe valia de vitória, já que fora o mentiroso da Feira de Formosa mesmo sendo Cardiologista.
 
           – Que coisa feia mãe! Escutar oração dos outros! Onde já se viu?
           – Fei é chamar Santo de Tom, e baixe o tom pra falar comigo que sou sua mãe!
           – Baixo não!
           – Eduarrrrrdooo...
           – Baixo não mãe, o coitado já tá de cabeça pra baixo...
           – Eduardo Campos da Silva!

           Dona Dulce não entendeu a piada, mas compreendeu o desdém.

          – Ta bom mãe, me desculpe. “Antoim”!

         Apontando o dedo e tocando seu filho com o olhar torceu a situação até pingar a última palavra, que por ventura, respeito e imposição era sempre sua:

          – “Santo Antoim”, e já disse que num é santo pra essas reza!

           Para cada fim de domingo que arrancava de seu lado menino a obrigação de ser  o homem da segunda-feira, Eduardo tinha o trajeto de casa, era o disparo e o descanso, ele revia e revivera em meia hora sua vida inteira trafegando e concluindo entre um semáforo e outro o que fora e o que era, faltou-lhe no decorrer da estrada o que hoje lhe sobrava, tinha sombra, sacada, piscina, sauna, saúde e saudade, só não sabia de que, mas não tinha conflitos, nem tempo para exercer além do ofício a existência, resistia a sentar e sentir, só sentava para trabalhar, caminhava para chegar, achava que rotina era um hábito e trajava essa batina todo santo dia útil e domingos alternados, chegava a porta de casa e de dentro de um forte blindado que insistiam em chamar de portaria, alguém que ele nem via lhe permitia a entrada, não lhe importava quem abrisse o portão do Pallace de León, só entrava porque morava, estacionava pois havia de guardar o carro, só deitava porque dormia, afinal, amanhã por mais segunda-feira que fosse era sempre um primeiro dia.
          Enquanto a segunda-feira, roubava o descanso, matava a felicidade e destruía a disposição de Lis, secretária de Eduardo, ele atrasava por descuido e ainda inconformado reclamava com seu ego e difamava seu âmago: “tão pontual, não sei nem mais ser o que era”.
           Eduardo atrasara quase como um ritual, passava distante do que cumpria há anos atrás com excelência, o que chamava de fadiga eu traduzia como idade, sei disso pois o mesmo me dizia que não importava o quanto olhasse no relógio estava sempre atrasado, não importava quanto esforço fosse necessário ao desafio da jornada, paralelo aos compromissos estava lá, sem cinismo, simples e justo, o desafio das horas, Eduardo era vítima do tempo e achava que parar para notar isso era perdê-lo, talvez não calçasse os sapatos tão rápido quanto antes, ou fosse tão veloz em vestir a calça, ou mais! Talvez a culpa fosse da diarista que fazia o café instantâneo atrasado, mas já não levava mais os filhos ao colégio, como podia perder esse tempo ganhado? Aos vinte e cinco Eduardo acordava cada dia mais velho, o tempo lhe comia vivo e ele ainda pensava no futuro, agora com sessenta anos, sufoca por um desafio a fim de não perder o sentido, mas não mantém coerente a relação tempo e distância até o trabalho.
        Nesse dia não entrou, transpassou como um projétil até sua sala, pressurizou a porta como se congelasse o tempo, olhou para o relógio que parecia gargalhar da sua frustração, trincou os dentes de ódio e se dirigiu a porta a fim de constatar se de fora, alguém ouvia aquela risada cronológica de semitonamentos perfeitos em intervalos de um segundo, quando pôs o ouvido no entalhado maciço escutou três batidas, que caso tivesse herdado a audição sensível de Dona Dulce lhe perfurariam o tímpano:

           – Dr. Eduardo? – Era Lis e toda sua fidelidade profissional.
           – Que susto do caralho. – Sussurrou. Se não haviam escutado o gargalhar do relógio, o “caralho” sua secretaria captou, voltou a mesa em passos mais sutis que o “tic tac” do seu inimigo, e soltou um “Pode entrar”, num tom equilibrado totalmente avesso a situação.
           Lis, lhe passou sua agenda inteira como se ele não soubesse do que se tratava mais um dia, ele ouvia o rebolar das palavras perdido na incerteza daquele ponteiro, partindo de um mesmo ponto e voltando pro mesmo lugar sem tornar a ser igual, contornando de sessenta em sessenta segundos uma segunda de trabalho, isso era tudo que o relógio tinha a receber do tempo, trabalho! Por isso ria, sabia que mesmo trabalhando a seu favor não seriam poupados seus dias até que alguém esquecesse de trocar sua bateria, contudo, no máximo pararia de girar, não retardaria o badalo mas teria tempo para pensar nas voltas que a vida dá. Pá! Um tapa na mesa e a explanação de uma ideia:

              – É isso!
              – Isso o que doutor?!
              – Eu tô tirando a pilha!
              – Que pilha?!
              – Do relógio!
              – Que relógio?!!!
              – Do meu!
              – Mas o senhor nem usando relógio está...

            Só então percebeu que não era Lis que falava, mas sua primeira consulta do dia. Além da vida, o tempo achou pouco e veio lhe roubar a sanidade e a compostura, constatou que passara literalmente a “olhar para o tempo”, se projetava no vago, divagava no íntimo, um pensamento tão profundo que achava inconcebível se encaixar num sertanejo domado pelo esforço, quando retomava o instante nunca estava onde parou, e esse anjo carniceiro, oxigênio da vida não economizava um único milésimo de sua existência, sobrevoava sua carcaça numa performance encantadora, degustando cada pedaço de Eduardo inerte aquela arte que o tempo tem de passar desapercebido enquanto ele deleitava no existencialismo, batizou isso de “tirar a pilha”, razão de chegar atrasado, não era o trabalho que lhe roubava a luta, mas o tempo que não dava trégua, precisava conversar comigo, precisava ouvir a voz de Dona Dulce que valia mais de conforto que suas palavras, precisava se aconchegar em sua mãe como um lugar seguro enquanto ainda era possível, precisava de um desafio novo para ocupar sua mente, distrair-se num novo ideal tão inerente a realidade para não se destruir no principio da incerteza do que estava por vir, Eduardo ainda não tinha percebido que o ideal não existe pois esta no futuro e o futuro não existe até que aconteça, o relógio sorria e ele clinicava pensando que não pararia nada daquilo, nem aquela gargalhada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário